31 de maio de 2009

Hoje vou ver a minha Avó

Imagino as tardes e as manhãs na sua casa como horas longas, infinitas no seu presente, nítidas, com tempo bastante para recordar idades que mais ninguém lembra sem ajuda.
Anda pela casa, vestida com as suas batas de viúva, e os seus passos costumavam apressar-se quando ia terminar de fazer alguma coisa: lavar a roupa no tanque do quintal, apanhar uvas maduras, fazer renda, pôr mais água ao corvo (sim, a minha avó tinha um corvo de estimação).
Ao acordar, cumpre a sua rotina precisa, bebe leite por uma caneca e penteia os cabelos finos, brancos demonstrativos da avançada idade, colocando depois o seu lenço, sem o qual não se "sente bem", na cabeça. Esse é o único momento em que se vê ao espelho, há quanto perdera a vaidade, as futilidades do espírito...
Já não sai todas as manhãs para comprar comida na mercearia. Antes, quando os seus olhos ainda o permitiam, saia em dias que conhecia e escolhia. Nos Invernos mais rigorosos, para evitar os frios e ventos típicos da época, vivia com mantimentos que guardara o resto do ano, tal e qual, uma formiga trabalhadora.
Ainda agora, quando sai de casa leva sempre o porta-moedas na mão. Todos os seus objectos, até o porta-moedas, têm uma história, chegam de um tempo que existiu antes de mim. Ela conhece os caminhos certos até à mercearia, sem os ver porque tem cataratas nos dois olhos, diz bom dia a todas as pessoas que encontra e não haverá nada, ou muito pouco, que a possa surpreender.
Em casa, coloca os pés com cuidado sobre cada degrau das escadas. Na rua, ela desce a ladeira com o mesmo cuidado, sem degraus, sem corrimão apenas com o seu cajado (o substituto dos seus olhos).
Às vezes ela sai para a rua quando ouve a carrinha do pão ou um outro qualquer vendedor ambulante.
Costumava ir muitas vezes a casa das vizinhas, conversavam baixinho quando falavam de alguém: Sabes o que aconteceu à, e diziam um nome qualquer.
Tratarem-se por tu é a prova inusitada que, noutro tempo, foram novas, foram raparigas com ideias sobre o que seriam quando tivessem a idade que têm.
A minha avó gosta muito de falar dos netos com as vizinhas, escutam-na sempre e depois perguntam-se se será verdade o que diz (a memória já não é como antes, acaba por ter alguns lapsos decorrentes dos seus mais de noventa anos). Ouve tudo o que lhe contam, com a mesma avidez com que ouve as minhas histórias, até as mais insignificantes.
Lembro-me de ouvi-la também, com o mesmo entusiasmo, falar das suas aventuras.. Ouço-a contar todos os pormenores do seu primeiro emprego, do primeiro vestido que comprou com o dinheiro que ganhava, das dificuldades económicas pelas quais passou quando era jovem, tão ou mais do que eu.
Sempre que entro na sua casa, ainda sinto aquele aroma a maças, da tarte que ela costumava fazer quando eu lá ia passar as férias de verão.
Julgo que não me vê, porque tem cataratas nos dois olhos, mas sabe-me de cor com um fulgor muito próprio, muito seu.
Tenho muitas vezes saudades da minha avó, sem lhe dizer.
Com a idade que tem guarda-se um certo conservadorismo, alguma rigidez de sentimentos, talvez no porta-moedas que traz na mão sempre que sai de casa.
Mas vejo-a, não só porque (ainda) não tenho cataratas mas porque a sei de cor com um fulgor muito próprio, muito nosso.
É por estas e por outras Avó, que vou visitar-te e dar-te um abraço bem forte.


Este texto é dedicado, não só à minha querida Avó Mariana,
mas também aos meus Avós e a minha Avó Ermelinda,
que partiram sem me darem tempo para poder dizer
que os amava... e continuo a amar.
Sei que estão a olhar por mim...

1 comentário:

  1. Tens sorte de teres a tua avó ainda aí para ti. Queria saber o significado dessa palavra, a verdade é que cresci sem a figura dos meus avós, e acredita que é uma coisa que me deixa muito triste. É uma parte de mim, que se encontra vazia com muita pena minha.
    Mas gostei de ler o que escreveste da tua avó, (veio-me uma lágrima ao olho). É bonito de ver, especialmente tu, que pareces olhar para ela com um carinho muito grande.
    Dá-lhe, dá-lhe um abraço bem grande. Nesse abraço cabe o Mundo todo!


    beijinho querida :)

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Desde já Obrigada :)

Only Memories.